sábado, 14 de fevereiro de 2009

#2 A literatura questionadora: Chapeuzinho Amarelo, ou "dome seu medo"

O discurso que vai além de suas páginas já é, por si, questionador: nos leva a perseguir outros significados, não só os dados pelo autor. Podemos ver isso, por exemplo, a partir das ilustrações de um texto e da própria organização gráfica de um livro. A parceria, em Chapeuzinho Amarelo (José Olympio Editora), entre Ziraldo e Chico Buarque presta esse serviço. Ziraldo, já conhecido e consagrado por obras que instigam discussões e reflexões (O Menino Marrom, Flicts), traz ao texto de Chico imagens que ampliam sua dimensão.




Na ilustração, é a tradição do medo à sombra da menina, em suas costas, cristalizada, trazida pelas obras de Perrault/Grimm. O ‘LOBO’ é sombra e está em caixa alta, é o sujeito que domina e dá o tom de toda a primeira parte do livro. As cores de Chapeuzinho são pálidas; seu olhar, de esguelha, desconfiado. Os verbos estão no pretérito imperfeito, indicando continuidade de um fato (o medo), são em tom melancólico, triste (descia, resfriada, tossia, estremecia) e sempre acompanhados de negativa. Os discursos de autor e ilustrador se completam.
Em Perrault/Grimm, a personagem de Chapeuzinho Vermelho ainda não conhecia o medo, que se instaura com a figura dominante do ‘lobo’. Os papéis cumpridos pelos sujeitos da história trabalham a uma ética moralizante, que ensina à criança determinados preceitos e condutas condizentes à época em que foram escritos. Chapeuzinho Amarelo já está impregnada desses preditos e teme algo que não se pode ver: um ‘lobo’ virtual, que talvez nem existisse, era o maior dos medos — talvez a reunião de todos eles.






Chico, em um discurso que se inicia paródico, leva o leitor a um caminho inesperado, desencadeado pela ‘diminuição’ do significante LOBO, para “só lobo” exatamente no momento em que a menina o vê de perto.
Ora, o autor explicita ao leitor que Chapeuzinho deve enfrentar o que se teme, perceber se a realidade é tão grande quanto ela (e talvez nós também) pensa. A narrativa, neste ponto, é totalmente invertida, em valores e papéis. O ‘lobo’, antes temível, procura manter seu valor, e para tal se vale da repetição do seu nome, “umas vinte e cinco” vezes. De tanto repetir, o ‘lobo’ inverte a ordem da palavra. De ‘lobo’ vai à ‘bolo’, e a inversão do significante é também a inversão do medo.






Agora, Chapeuzinho domou seu medo (o sintagma invertido torna-se o imperativo “dome”) e é quem se impõe ao ‘lobolo’. Agora não há nada a temer. Todo o seu medo tornou-se amizade, uma vez invertidas a ordem dos significantes. A ilustração de Ziraldo nos dá o índice da mudança ao traçar o caminho do lobo ao bolo, assim como todos os medos “trocados”. Toda a obra instiga a criança a perceber que os medos podem ir e vir e que a solução da personagem recontada por Chico Buarque foi essa, mas ao fim refletimos sobre a possibilidade de criarmos outros monstros e a nos perguntar sobre nossos medos.



Mais:

Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque
Ilustrações de Ziraldo
José Olympio Editora

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