sábado, 27 de março de 2010

Um Conquistador Nu

Paulo Markun resgata a história de um explorador espanhol que sobreviveu a três naufrágios, andou a pé, nu, 18 mil quilômetros, e escreveu livro que é referência na literatura de viagens

Markun, em encontro da Realejo Livros no Sesc Santos. Fotos do Flickr da editora

Náufrago, explorador, alcoviteiro, curandeiro, escravo, governador, escritor: algumas das facetas de Álvar Nuñez Cabeza de Vaca, explorador espanhol do século XVI, personagem real de várias (des)venturas que poderia muito bem ter saído de um livro de Gabriel García Márquez. Os fatos que compõem sua vida tem em geral um cárater pitoresco. O sobrenome descende de uma batalha de cristãos contra mouros na Idade Média. Errante, foi náufrago por três vezes, se tornou uma espécie de messias no México e sul dos Estados Unidos ao curar um nativo, angariando um séquito de índios. Na América do Sul, foi governador de Santa Catarina — o que indica as suas ligações com a história do Brasil, apesar da escassez de registros históricos. Em Assunção, depôs o primeiro governador eleito das Américas, Domingos Irala. O livro Cabeza de Vaca (Companhia das Letras, 2009), do jornalista Paulo Markun, reúne essas e outras histórias do intrépido espanhol.

Markun é presidente da Fundação Padre Anchieta e foi apresentador do programa Roda Viva, da Cultura, por dez anos. Trabalhou nos principais jornais e emissoras de televisão brasileiras. Criou as revistas Imprensa e Radar, a edição paulista do jornal O Pasquim e a newsletter Deadline, sobre negócios da comunicação. Em 1986, foi eleito o melhor apresentador de televisão, pela Associação Paulista dos Críticos de Arte. Em 2008, recebeu o prêmio Comunique-se na categoria executivo de comunicação. Para escrever o relato das aventuras de Cabeza de Vaca, foram oito anos de pesquisa. O espanhol registrou suas histórias no livro Naufrágios e Comentários (publicado no Brasil pela L&PM); Markun coletou documentos e textos inéditos em viagens internacionais.

O jornalista se apaixonou pelo personagem Cabeza de Vaca enquanto pesquisava sobre a história de Santa Catarina para produzir uma biografia a respeito de Anita Garibaldi: 'percebi que não havia uma narrativa com a linguagem de hoje, as referências que permitiriam conhecer melhor o que aconteceu'. A pesquisa deu início, em 2002, ao projeto de um documentário para o canal Discovery América Latina. O documentário acabou não sendo produzido, mas o jornalista continuou sua pesquisa. Na Espanha, encontrou papéis e documentos originais, guardados, empilhados sem organização e sem a transcrição que permitisse acesso pelo computador. Segundo ele, 'até 2003, os arquivos não haviam ainda sido digitalizados, porque na Espanha o Cabeza de Vaca não está no panteão dos heróis, ele não descobriu nada, não conquistou coisa nenhuma, não ‘deu certo na vida’'. Ainda: 'a Espanha conhece razoavelmente a história dele, assim como na América do Norte, principalmente no Texas e México; mas nós não conhecemos nada'.

De acordo com o jornalista, 'se vocês acompanharem o relato dele em território brasileiro, ele é uma fonte de informação muito interessante, por exemplo sobre as tribos indígenas, o comportamento dos índios, a fauna, a flora, as Cataratas do Iguaçu, as Sete Quedas, enfim, uma grande quantidade de informações que são pertinentes à nossa história e que nós não conhecemos porque não temos acesso, ainda que o livro dele tenha sido publicado'. Além dessas histórias e do seu valor histórico, Markun fala sobre o processo de produção do livro — incluindo uma controvérsia com o parecerista — e também das relações entre escritor e leitor: 'escrever um livro é sempre um trabalho solitário e de insegurança, na medida em que você quer saber se a história convenceu ou se entusiasmou ou sensibilizou o leitor'. As informações são de uma palestra concedida pelo jornalista no Sesc Santos.

O livro tomou oito anos de pesquisa e traz documentos inéditos

Leia as histórias

Para mais histórias desse que foi um 'perdedor de sorte', segundo Markun, 'porque perdeu muitas vezes mas sempre safou-se pela sorte e um pouco pela resistência', há o site em que o leitor poderá conferir informações sobre a época, documentos e casos de outros personagens que não aparecem no livro. 'É uma forma do leitor que não tiver condições de comprar o livro conhecer melhor a história e, para os pesquisadores, há todo o material que foi utilizado. O livro acabou de ser lançado, então muita gente, espero, ainda vai se entusiasmar por ele'.

Colonizador, Aventureiro, Usurpador

'Cabeza de Vaca nasceu em torno de 1488, numa família de fidalgos, algo como a classe média. Seu avô paterno, Pedro de Vera, homem renomado, teve papel importante na conquista das Ilhas Canárias. Na Espanha havia algo como uma ‘parceria público-privada’ entre a coroa e os conquistadores. Nenhum sujeito entrava num barco e ia conquistar algo sem autorização real', e essa era concedida apenas à troca de dinheiro da Espanha, principalmente no governo de Carlos V, 'que torrou milhões e milhões de riquezas do Peru, parte do México, a prata da mina de Potosí na Bolívia'.

'O Cabeza investiu cinco anos do suposto salário dele tanto para ir à América do Norte como tesoureiro — usando também dinheiro da mulher — tanto para a segunda viagem, para ser o candidato a governador. E era curioso porque ele veio para o Brasil na seguinte situação: se um certo Juan de Airosa estivesse vivo, que era uma espécie um herdeiro indicado do governador anterior, ele ficaria só com a ilha de Santa Catarina, se estivesse morto, ele ficaria com o governo do Rio da Prata. Então ele de alguma forma se convence que esse Airosa estava morto, vai para Assunção e então depõe, ou pelo menos substitui, o primeiro governador eleito da história do continente americano, o Domingos Irala, que tinha sido eleito pelos colonos'.

Onde o mouro comeu a vaca e deixou a cabeça

'O título foi um pouco inspirado nos livros da época, do século XVI, como por exemplo o Dom Quixote, e também no sentido de tentar apresentar um pouco para o potencial leitor esse ‘cara’, que é incompreensível'. A origem do sobrenome remonta ao século XIII: 'em 1212, um pastor de ovelhas indicaria ao rei de Castela a maneira de conquistar um ponto chave numa batalha contra os mouros desde que ele pudesse voltar ao lugar onde os mouros tinham comido uma vaca e deixado sua cabeça. Então os soldados acompanham esse cara e, realmente, conseguem ganhar a batalha. O rei, então, permitiu que a partir daquele momento os soldados participantes dessa história adotassem o sobrenome Cabeza de Vaca'. Essa versão, de 1570, foi a adotada pelo autor.

Capa original do livro de Cabeza

No Brasil

Em terras tupiniquins, após 1541, teve contato com dois pontos cosmopolitas. Primeiro, Cananeia, onde havia uma colônia que recebia embarcações de várias bandeiras. Depois, em Santa Catarina, pouso de uma colônia de náufragos e de índios. Essa colônia também atendia navios e nela co-existiam pacificamente índios, portugueses, degredados, náufragos, espanhóis, 'mas hoje não sabemos direito qual era tamanho dessa colônia', diz Markun. Neste lugar, Cabeza 'teve contato com um índio aculturado chamado Miguel do Brasil, que falava castelhano e guarani; ele foi uma ponte entre o espanhol e os índios'.

Cabeza batiza o território catarinense de Província de Vera, em homenagem ao avô. Foi governador de Santa Catarina pela Espanha, mas não sobrou nada de registro oficial, além de suas memórias. 'Há uma ilha em Floripa chamada Ratones, e dizem que foi o Cabeza de Vaca que nomeou. Ele descreve a baía de Ramos, o estreito da ilha com o continente, mas não há registro histórico disso'. Há uma discussão sobre se um barco naufragado no litoral catarinense seria da frota dele ou não. Um espanhol governando no Brasil? No século XVI, Santa Catarina era portuguesa para os portugueses, e espanhola para os espanhóis, dada a impossiblidade técnica, à época, de determinar o meridiano de Tordesilhas. O espanhol governou por oito meses e deixou em torno de cem homens por aqui.

O náufrago que ninguém comeu

Cabeza passou por naufrágios, privações, atuou como curandeiro, liderou legiões de índios. Em certo episódio, naufragou entre Estados Unidos e México. Terminou em um lugar, apelidado por eles, de Ilha do Mal Fado. Cabeza conta, nas Memórias, que ali um grupo de náufragos passou por uma fome tão grande que os levou a comer uns aos outros — sobrou só um, porque não havia ninguém para comê-lo. Cabeza e os seus companheiros 'viviam nus, pois foram perdendo as roupas, e passaram uma fome extrema, comiam cactos'. Após algum tempo de viagem, o conquistador entrou em contato com índios e curou um deles de alguma doença. 'Rezaram um Pai Nosso, um Ave Maria, fizeram o sinal da cruz e um índio ficou bom. A partir desse momento ele passou a ser seguido por uma legião de índios e ia de tribo em tribo para saqueá-las'. Dessa forma, ele e outros três sobreviventes caminharam 18 mil quilômetros pelo que hoje são os estados do Texas, Novo México e Arizona, como índios, nus. 'Quando escontrou novamente os espanhóis, ele estava numa situação tão incrível que ninguém o reconheceu, barbado e nu'.

O parecerista e o editor

'O parecerista destruiu, acabou com o livro e eu tive dificuldade de aguentar a paulada, mas depois de ler algumas vezes passei a dar razão a ele. A base da crítica do parecerista é que a história se perdia no meio do caminho. Ao tentar passar para o leitor a quantidade de fatos e personagens imensos, eu produzi um negócio que não era nem livro de aventura nem um tratado histórico. Então eu tive que desconstruir tudo aquilo que eu tinha feito para deixar o sumo no livro e perseguir a história do Cabeza de Vaca a partir da perspectiva dele sem tentar tomar partido. Ele não é herói nem vilão, é um personagem cheio de nuances'.

As reações ao livro agradam: 'Eu já tive reações diversas ao livro, como: ‘Ah, esse cara é um bandido’ e outro ‘Poxa, esse cara era bom mesmo’, então eu acho que eu consegui esse intento de fazer com que a história não seja minha, mas de quem lê. Eu agradeci ao parecerista no fim do livro. É sempre difícil você encarar a crítica ao teu trabalho, ainda mais quando ainda não foi publicado. O trabalho do escritor ganha quando há um bom editor. Isso funciona mais para não-ficção do que para ficção. Acho que essa contenda sobre a história é sempre um bom recurso, embora seja necessário humildade para receber'.

Internet, Recepção do livro, Crepúsculo e Dan Brown

A internet oferece espaço para a discussão e para perceber a recepção do livro: 'Uma crítica que eu achei sensacional foi: ‘eu gostei do livro
Cabeza de Vaca, parece o filme Avatar’. Eu disse: ‘estamos bem na foto’. É disso que o nosso trabalho vive, da satisfação ou insatisfação do leitor, da possibilidade de crítica'. Todo autor gosta disso [do contato com seus leitores]. Escrever um livro é sempre um trabalho solitário e de insegurança, na medida em que você quer saber se a história convenceu ou se a tua literatura entusiasmou ou sensibilizou o leitor'.

Em qual setor da livraria poderíamos colocar
Cabeza de Vaca? 'Na frente, ao lado de Crepúsculo e Dan Brown!', ri. 'É biografia, indiscutivelmente, mas ele é também a coisa de acompanhar a trajetória da personagem com o ritmo e ordem cronológica de filme. Não é à toa que eu estou fazendo agora um roteiro cinematográfico baseado no livro. É absolutamente fascinante a vida de Cabeza, e não dava pra contar isso com muito rigor em determinados trechos'.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Otimista Incorrigível

'O tipo ideal de leitor: o que sabe que nenhuma leitura é perda de tempo se der prazer'



Caricatura de Mindlin, feita por Rice Araújo, disponível nesse blog.


O advogado, empresário e bibliófilo José Mindlin faleceu no último dia 28 aos 95 anos de idade. Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e dono da mais importante coleção de livros privada do país, ele deixa acervo com cerca de quarenta mil volumes para biblioteca 'Brasiliana Guita e José Mindlin', que está sendo construída na Universidade de São Paulo. Sobre sua paixão, diz: 'os livros não caem do céu: a gente os procura e, coincidentemente e principalmente em matéria de livros raros, eles também nos procuram'.


A primeira e única vez que o vi pessoalmente foi em palestra proferida junto a Antonio Candido em ocasião dos 50 anos da obra Corpo de Baile, de Guimarães Rosa. No pequeno auditório do prédio de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, algumas centenas de alunos se acotovelavam para ouvir esses dois 'mitos' da intelectualidade nacional. Sendo o primeiro a falar, José Mindlin gracejou, pois 'seria difícil' ter a palavra depois de Antonio Candido, a quem considerava como 'irmão mais novo'. Dele, escreve o autor de Literatura e Sociedade:

'[Mindlin] é leitor onívoro, pronto para ler tudo, desprezando projetos sistemáticos de leitura, interessando-se pelos assuntos mais variados. E, ao mesmo tempo, sabe selecionar os livros, organizá-los, distinguir filões e ter preferências, que se vão tornando as dominantes do seu gosto. Indiscriminado e seletivo, glutão e refinado, ele é o tipo ideal de leitor, porque sabe que nenhuma leitura é perda de tempo se der prazer'

(Prefácio ao livro Uma Vida entre Livros, p.11 — leia trechos online aqui)

Com seu aspecto sereno e um sorriso no rosto, Mindlin conquistou a platéia com suas histórias sobre Guimarães Rosa e seus livros. Uma relação não apenas de admiração mas de intimidade com autor e obra (é dele, por exemplo, os escritos originais do livro Sagarana, de Rosa). No meio da multidão de alunos, ouvia-se: 'ele é uma graça, queria que fosse meu avô'. Fato é que o bibliófilo não era o mais aguardado por muitos que ali estavam, jovens estudantes, que pouco conheciam de sua história como, entre muitas outras funções, advogado, reconhecido empresário da Metal Leve S/A peças automotivas, presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e Secretário Estadual da Cultura por São Paulo durante o período da Ditadura Militar. Neste posto, convidou o jornalista Vladimir Herzog para a diretoria de jornalismo da TV Cultura e, de acordo com o governador do estado de São Paulo, José Serra: 'sabe-se que os torturadores dos jornalistas presos procuravam, também, incriminar a Mindlin. E ele soube se comportar com altivez e dignidade diante das ações da ditadura que levaram à morte de Herzog'.

Talvez ele tenha sido, como nas palavras do escritor Jorge da Cunha Lima em seu blog, umaunanimidade discreta. Reconhecido por uma postura sempre educada, íntegra e que se preocupava com o País, Mindlin afirmou: 'despertar na grande massa o interesse pela leitura, antes de tudo como fonte de prazer, constitui, a meu ver, um fator essencial de desenvolvimento'. E: 'sou um otimista incorrigível', como disse em entrevista ao Roda Viva. Seu trabalho não era de crítico, romancista ou ensaísta, era o de um homem que amava a leitura e os livros, e fez deles um dos principais interesses da sua vida.


Em Uma Vida Entre Livros, Mindlin relata sua vida como colecionador de livros raros

Garimpagem

Mindlin seguia seu amor com critério, os livros eram garimpados com dedicação. A semente para a busca de raridades, diz em seu discurso de posse na ABL, foi plantada aos 13 anos, quando começou a frequentar os sebos de São Paulo e encontrou uma edição portuguesa do Discurso sobre a História Universal, do bispo e teólogo francês Jacques Bossuet, publicado em Coimbra, em 1740, data que o fascinou, 'embora mais tarde tivesse aprendido que a data das edições é um elemento secundário em sua importância'.

Entre muitas histórias, passou 15 anos atrás de um exemplar da primeira edição do romance O Guarani, de José de Alencar e era de sua biblioteca a primeira edição dos Ensaios de Montaigne, datada de 1588. Em seu livro Uma Vida entre Livros, editado pela Companhia das Letras, o brasileiro pede a palavra emprestada ao francês: 'quando encontro dificuldades na leitura, não me preocupo demais, pois se insistisse perder-me-ia e o meu tempo; meu espírito é de compreensão imediata. O que não entendo à primeira vista, entendo menos me obstinando. Não faço nada sem alegria'

E na alegria de sua eleição para a Academia Brasileira de Letras em 2006, o destino, em suas próprias palavras, 'trouxe um contraste entre uma grande alegria e uma tristeza profunda' levando para sempre sua companheira da vida inteira, Guita Mindlin, poucos dias depois. Mindlin ocupou a cadeira de número 29, cujo patrono é Martins Pena e foi ocupada por Arthur Azevedo, Vicente de Carvalho, Cláudio de Sousa e Josué Montello. De Vicente de Carvalho, o bibliófilo possuía o original manuscrito do poema 'O Pequenino Morto' publicado em 1904 pelo jornal O Estado de S. Paulo. Nesse jornal, começou como repórter antes de completar dezesseis anos de idade. Segundo ele, 'fui repórter precoce. Eu já escrevia razoavelmente, mas O Estado era rigoroso no Português, escrever com correção e clareza, eu aprendi lá'.

Acostumado a viver desde cedo em um ambiente letrado — suas primeiras leituras 'sérias' foramO Monge de Cister e O Bobo, de Alexandre Herculano, aos 12 anos de idade — Mindlin foi sim, precoce, mas a formação de sua biblioteca não tem a ver diretamente com isso, não foi planejada, mas aconteceu em razão de suas leituras e essas, em suas palavras, continuaram sendo seu 'fulcro e razão de ser'. A garimpagem das obras trazia um sabor especial:

'Os livros não caem do céu: a gente os procura e, coincidentemente e principalmente em matéria de livros raros, eles também nos procuram. A aventura da garimpagem provoca, mesmo em céticos como eu, a suspeita de que alguma coisa sobrenatural possa estar protegendo as buscas do leitor apaixonado. Chego a pensar que embora a leitura seja uma fonte inesgotável de prazer, a garimpagem provoca um prazer diferente, às vezes superior ao outro. Quando se encontra uma obra procurada durante décadas, o coração bate mais forte'.


O coração também bate forte ao ouvir a voz serena — igual a que ouvi naquela palestra sobre Rosa — declamando o último parágrafo de uma das maiores obras da literatura brasileira:Grande Sertão: Veredas (da qual o bibliófilo tinha a primeira edição). Por este link, você ouve a gravação. Que o fim dessa homenagem seja assim, bela e universal, na voz do homem que tinha pelos livros o seu fascínio:

Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro.

Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro.

O Rio de São Francisco — que de tão grande se comparece — parece é um pau grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minhas idéias confirmou: que o diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano.

Travessia.

quarta-feira, 24 de março de 2010

"Hoje, estou acima do bem e do mal"


Em seus quase 90 anos de idade, uma das maiores atrizes brasileiras ganhou fotobiografia editada pela Imprensa Oficial de São Paulo

Tônia Carrero, Movida Pela Paixão (Imprensa Oficial de São Paulo, 2009): com esse título que traduz a essência de uma trajetória, foi lançada no Rio de Janeiro a fotobiografia da atriz Maria Antonieta Portocarrero Thedim, ou simplesmente Tônia, musa das praias cariocas, umas das mais célebres e belas personagens da dramaturgia brasileira. Consagrada por uma sólida carreira de sucessos no teatro, cinema e televisão desde os anos 1940, Mariinha (como era chamada por sua família e amigos próximos) passou por cima dos estereótipos da beleza e da fama e, hoje, ancorada pela experiência de seus 87 anos, diz: 'não disfarço mais nada. Não quero que me achem linda ou brilhante. Hoje estou acima do bem e do mal'.

A fotobiografia, de autoria da jornalista Tania Carvalho, é recheada de citações de entrevistas de Tônia e também de depoimentos de grande personalidades sobre a musa. Entre os admiradores estão, além de Carlos Artur Thiré, Paulo Autran, amigo da vida inteira, falecido em outubro de 2007, a quem Tônia dedica o livro; Aníbal Machado, Paulo Mendes Campos, Guilherme Figueiredo, Fernando de Barros, Ronaldo Bôscoli, José Carlos de Oliveira e Carlos Drummond de Andrade. O poeta mineiro comenta uma alegria e perfila a atriz:

'Chuvinha cinza-chata, dessas que sujam a manhã, mas ao abrir o jornal vejo sair dele um senhor raio de sol, que retifica a paisagem: nasceu uma menina. A menina é neta de Tônia Carrero. Tônia cada vez mais linda, mais artista, a ponto de obrigar a gente a não perder capítulo de novela de televisão, e a confessar que não perde'. (...)

Tônia, em cena do filme Chega de Saudade(2008)


Na inauguração da Sala Tônia Carrero, em janeiro de 2007, no Rio, Carlos Artur Thiré apresentou um texto em que explicava como é que uma pessoa pode virar teatro. Uma receita. 'Para um dia virar teatro, você tem que, antes de mais nada, nascer a única filha mulher de uma família de militares: seu pai tem que ser militar, seus irmãos, todo mundo da família, menos você! Pelo contrário, você tem que ficar ali, quietinha, sem quase abrir a boca, e quando fizer 17 anos, virar uma mulher deslumbrantemente linda, e pimba, contra tudo e contra todos, casar com um artista e sair de casa deixando todo mundo de boca aberta. Levando com você, dali, só o apelido que vai te acompanhar a vida inteira em família: 'Mariinha''. Segue a isso o percurso de esforço, prêmios, peças, novelas, todo um caminho que acompanheremos na segunda parte dessa matéria.

Tania tem a sensibilidade de captar não apenas os momentos mais importantes na carreira da atriz, mas aquelas histórias singelas, guardadas no baú da memória, que marcaram sua trajetória. A dureza da mãe, os passeios com o pai, o carinho dos irmãos, a vida de casada, de separada, as traições, os amores, as viagens, o grande amor pelo filho Cecil Thiré (ator, com biografia também traçada pela jornalista), sua relação com os homens, com o sucesso e a beleza. Esta última aparece em seu relato de forma marcante. Uma citação diz: 'beleza é poder, sexualidade é poder. Já senti esse poder bem firme nas minhas mãos e me dei mal com ele. Usei esse poder contra mim. Podia ter orientado minha vida mais seriamente se tivesse tirado a venda desse pequeno poder'.

Hoje, aos 87 anos, a atriz diz ter superado o 'trauma' com o espelho, tendo sido difícil aceitar que, agora, não tinha mais o corpo desejável de antigamente. No palco, porém, diz que rejuvenesce, pode viver uma mulher vinte anos mais jovem. A melhor coisa da idade, diz, é a liberdade de ação: 'Digo o que bem entendo, e não tenho medo'.

Cecil Thiré, no programa de A Visita da Velha Senhora (2002), diz: 'Cada etapa da vida é marcada por uma idade que varia de pessoa para pessoa. A infância pode se prolongar, a meia-idade pode vir mais cedo, etc. O que mais me admira ao observar a minha mãe ao longo da minha vida (já não tão curta; 60, ano que vem) é o ímpeto jovial (...). Alegre, generosa, sem nenhum tipo de temor diante da vida, assim a vi passar da jovem quase ingênua entrando na maturidade lenta e gradualmente e mantendo-se neste processo de amadurecimento enquanto os aniversários teimam em dizer a ela que esmoreça, abrande o ãnimo, diminua seu fogo, acomode-se e se recolha mediante o avanço da idade. Qual o quê!'.

Receita para Virar Teatro

Os sucessos da atriz começam no Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, local onde também estiveram nomes como Nydia Licia, Sérgio Cardoso, Walmor Chagas, Cacilda Becker e o saudoso Autran. Com ele, Tônia interpretou sua primeira peça: Um Deus Dormiu Lá em Casa, sob a direção de Silveira Sampaio. Antes disso, já casada com o artista plástico Carlos Thiré, protagonizou o filme Querida Suzana, pela Vera Cruz, Companhia Cinematográfica, da qual foi estrela.

Junto ao segundo marido, o italiano Adolfo Celi, e Paulo Autran, Tônia formou a Companhia Celi- Autran-Carrero, que entre clássicos de Shakespeare (Otelo) e Peças de Vanguarda, como Entre Quatro Paredes (Huis Clos), de Jean-Paul Sartre e Frankel, de Antonio Callado, fez parte da geração que revolucionou a cena teatral brasileira. Temos a sensação de um transporte automático ao início da década de 50, em meio das peças dirigidas por Ziembinski, com os papéis de sucesso vividos pela atriz em Se Não Chover, de Henrique Pongetti e Cândida, de Bernard Shaw.

Em 1960, Tônia recebeu o Prêmio Governador do Estado de São Paulo de melhor atriz por Seis Personagens à Procura de Um Autor, de Pirandello. Já em 1965, cria a Companhia Tônia Carrero. Nessa mesma década, a atriz interpreta personagens de peso, como Neusa Suely, da peça Navalha na Carne, de Plínio Marcos, e ganha o Prêmio Molière e Associação de Críticos Cariocas.


Tônia, em Pigmalião 70. O corte de cabelo da personagem foi moda na época (daqui)


Entre inúmeros outros trabalhos no teatro, destacam-se em sua carreira Macbeth, de Shakespeare, novamente em companhia de Autran, Casa de Bonecas, de Ibsen, sob a direção de seu filho Cecil, Doce Pássaro da Juventude, de Tennessee Williams. Sob a direção de Antunes Filho, fez Marta de Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, de Edward Albee. Voltou a contracenar com Autran em A Amante Inglesa, de Marguerite Duras.

Na televisão, Tônia interpretou papeis igualmente marcantes, como na novela Pigmalião 70 (acima), em que o corte de seus cabelos foi modelo a nove entre dez mulheres brasileiras, recebendo, por homenagem, o nome de Pigmalião.

Hoje, moradora do Rio de Janeiro, cidade que também guarda suas memórias, Tônia recebe de seu público a homenagem que muitos artistas brasileiros deixaram de receber. O reconhecimento por seu mais de meio século de trajetória foi expresso em alto nível, de acordo com o brilho e a importância de sua carreira. Pagamos uma dívida com essa grande atriz, na espera de que outros nomes do teatro, cinema e televisão brasileiros também recebam a justa homenagem e atenção merecidas.

domingo, 7 de março de 2010

Reggae, Soul e Caranguejada na Cidade do Prédio Torto

'Negamos a internet e apoiamos sua extinção, este monstro de fibra ótica e pornografia. Na realidade, usamos das fontes mais porcas e preguiçosas para nossos trabalhos meia bunda'

Design gráfico caiçara


Deles, o colunista da Folha de S.Paulo e crítico cultural Marcelo Coelho disse: 'deliberadamente, com muita ironia e arte, refazem a arte da propaganda política dos anos 30'. O Coletivo Action, formado por Raphael Morone e Rui Costa, é sediado em Santos, litoral de São Paulo, realizam um trabalho que mistura arte gráfica, jornalismo gonzo, humor e talento. Na entrevista cedida, Morone fala sobre a ligação do seu trabalho com a cidade em que mora, critica o modelo de cultura do lugar, amaldiçoa a internet e defende o minimalismo. Ele deixa claro que que o Coletivo é espelho de seus próprios criadores, desde o estilo de escrever que reflete como falam no cotidiano até os assuntos e a 'preguiça' que tem de atualizar mais vezes o blog. Não são, dizem, serious business e nem pensam em mudar a cidade em que vivem nem ninguém, embora, para eles, fosse uma boa se isso acontecesse: 'imagina só, reggae. soul e caranguejada na cidade do prédio torto?'.

Outra imagem do Flickr do Coletivo


O Coletivo começou em outubro de 2008 com o blog. A ideia nasceu simples, de um trabalho da faculdade. Por ser apaixonado por música negra e pela vanguarda soviética, Morone resolveu criar, junto com os amigos, um zine chamado Action. O nascimento do projeto, de acordo com o designer, ocorreu por dois motivos: 'uma foi pela minha necessidade de divulgar meu trampo, conseguir contatos como designer. Hoje em dia, em meio a tantas dificuldades que temos na profissão, produzir conteúdo é sempre uma vantagem a mais para conseguir um trampo fixo ou um freela', diz, 'o outro foi pela própria agitação cultural de Santos. Mas eu odeio utilizar essa palavra, soa pretensioso'. Afirmam ser apenas dois caras que resolveram falar do que curtem e que gostariam de ver a cidade 'melhor no aspecto cultural'. Sempre segundo Morone, 'as coisas tem acontecido aos poucos, e o feedback tem sido bem bacana, ainda mais na cidade em que vivemos e os assuntos que abordamos. Achamos melhor abordar esse nicho de público do que falar de tudo e não ter a qualidade que deveria'.

Morone é 'designer gráfico, fã de Mega Drive e futebol uruguaio'. Costa, 'gordo fenômeno' nas palavras do parceiro, é jornalista e produtor cultural. Suas colaborações para o Coletivo foram o gonzo jornalismo e a bagagem de produtor cultural, além de um selo de música caribenha, o Riddim Records, primeiro a abordar o ragga no Brasil. Os dois se conheceram nas festas de reggae produzidas por Costa em Santos.

Sobre o processo de criação do trabalho, dizem: 'Negamos a internet e apoiamos sua extinção, este monstro de fibra ótica e pornografia. Na realidade, usamos das fontes mais porcas e preguiçosas para nossos trabalhos meia bunda. Cerca de 80% do que está lá pode ser achado na Wikipedia e foi feito em dez minutos ou menos'. Puro deboche? Morone tem por referências a vanguarda soviética construtivista, a arte cubana da década de 60/70, capas de discos caribenhos e o designer gráfico britânico Peter Saville. 'O minimalismo é um bom contraponto à arte atual, que se mostra cada vez mais suja, desorganizada e vazia de significado'. Costa, segundo ele, não tem nada disso, mas não nega a admiração pelos quadrinistas Robert Crumb e Maurício de Souza.

Inspirado nesta propaganda vintage de um medicamento antipsicótico


Planos, rentabilidade, exposições? São objetivos, mas não pra agora: 'Atualmente, nos focamos em outras áreas, pessoais, como a minha criação de minicoelhos e a dança contemporânea do Rui. Vendemos, mas ninguém comprou. Divulgamos através de Flickr, Twitter, blog e A Tribuninha [encarte infantil do jornal A Tribuna, de Santos], veículo ao qual envio colaborações constantemente'. De acordo com Morone, o espaço para a arte gráfica na cidade não é suficiente: 'Aqui em Santos, zero. Não temos uma galeria de arte contemporânea, mas os quadros de barquinho são lindos, e é nisso que se resume atualmente, sem contar o design autoral e único vendido pelas lojinhas de decoração, sempre uma boa pedida'.

De qualquer forma, a dupla faz questão de valorizar o berço. Em seu trabalho, buscam referências em suas memórias sobre Santos e também sobre a reflexão de como os jovens vive nessa cidade. Daí provém, segundo afirmam, o rosto azul sem face, nova marca do projeto. 'Praticamente tudo que fazemos tentamos dar uma roupagem caiçara, ou ao menos direcioná-la. Isso vem em boa parte pelo orgulho de sermos santistas e da tradição cultural da cidade'. Em vez de reclamar a respeito de 'uma fase seca, egos inflados e má-administração', e da falta de iniciativas culturais na região, a atitude do projeto repudia a não-vontade de mudança para a capital paulista. 'É fácil reclamar da ausência de boas iniciativas na região e tomar um ônibus esquecendo do que veio antes da Serra. Se agora tá ruim, tenha certeza, é porque assim deixaram ficar'.

Flyer desenhado para a festa PopScene, em que o Coletivo discotecou


Por enquanto, produzem, ocasionalmente, flyers. Mas há alguns projetos e congressos a participar no futuro. Em outubro, o Coletivo participou da Semana de Produção Multimídia (Samba) da Universidade Santa Cecília, que já trouxe, por exemplo, o Estúdio Colletivo de Design. 'Ficamos felizes em termos sido convidados, e um tanto surpresos, já que mal completamos um ano. Quando tudo estiver confirmado, a gente vai divulgar a data que iremos palestrar e fazer caranguejo lá na Unisanta'. Participarão também de uma festa de música negra, gratuita, no Mercado Municipal da cidade, ainda sem definição de data. O Coletivo também prepara o lançamento de um curta, narrando a trajetória de 'sucesso, fama e redenção na caminhada do Coletivo, contando sobre nossa consagração e envolvimento com prostitutas e drogas'.
A dupla levanta a bandeira de uma 'produção esparsa, regida pela preguiça, com algumas coisas boas pelo caminho'. Ócio? Sim, mas com dignidade. A se contar pela produção, que continuem com a preguiça.

(Também na Revista Capitu Literatura e Cultura)

sábado, 6 de março de 2010

Passarinho que se preza bebe caipirinha

Podcast de música brasileira ultrapassa fronteiras e tem audiência nos Estados Unidos, Inglaterra, Curaçao, Austrália, Finlândia e Faixa de Gaza. Aprecie sem moderação


Tudo começou com uma festa, passando ao programa de rádio e, por fim, ao podcast. Dessa forma, os jornalistas Mdc Suingue e Kika Serra apontam o início, há seis anos, do Caipirinha Appreciation Society, em que o mundo pode ouvir, via internet, música brasileira (muito) além de Gil, Chico e Caetano. A história começa em Londres, em 2003, com aquela primeira festa. O programa existe desde novembro de 2004. Em 2006, Kika uniu-se ao projeto e o programa passou a ser bi-nacional. O endereço eletrônico é ponto de encontro da música pra se beber, capirinha que se degusta à moda de um bom apreciador. Hoje, além do podcast, o programa musical também faz parte da grade da Open Air Radio, da University of London.

Apostando em brazilian music beyond the clichés, bandeira levantada pela dupla,o podcastsurgiu da constatação de que 'o que é apresentado como cultura brasileira lá fora é apenas uma fração do que temos a oferecer', traduzindo em boa música o que muitos tupiniquins gostariam de dizer àquele turista que pensa o Brasil resumido em samba, mulata e carnaval. Para o não-iniciado, adverte-se: se não sabe inglês, tenha um amigo tradutor, e os ouvidos apurados para ouvir deleites como Curumin, Bezerra da Silva e Jackson do Pandeiro, passando por Wander Wildner, Aracy de Almeida, Pedro Luís e a Parede e muitos outros, entre ícones e 'outsiders' da cena musical de ontem e hoje.


Trabalho gráfico da dupla


De acordo com Mdc, a diversidade e o colorido do nosso País são os critérios das suas escolhas musicais. Propõe-se, além de música sem rótulos, a subversão dos dogmas da indústria 'moribunda e deprimente'. Tal postura, segundo eles, deu fama ao Cas no cenário musical e em revistas especializadas em World Music pelo mundo afora. 'Uma das coisas que mais gostamos no mundo dos podcasts é o leque de opções que foi aberto para quem tem curiosidade. Como passamos muito tempo imersos em música brasileira para produzir o programa, quando temos um tempinho, nos dedicamos a conhecer mais de música internacional. Temos curtido muita música africana e ibérica. Explorar a 'podosfera' já é uma diversão em si'.

O programa apresenta-se em duas facetas: 'uma ao vivo, diretamente de Londres, outra editada, no Brasil'. Sobre Londres, diz: 'esse é o formato 'sujo': total improviso, frouxamente baseado em uma playlist previamente escolhida, que pode mudar de acordo com nosso humor e situação. É feito na base da adrenalina e qualquer erro é considerado um 'colorido' a mais'.A outra faceta, com o programa previamente editado, é o formato adotado quando a dupla está no Brasil ou viajando. Esse, dizem, é mais sofisticado, com as cores e os sons das ruas. O programa segue a linha freestyle: 'Tentamos não engessar muito o formato e o fator surpresa é muito importante em nossas playlists: evitamos ser previsíveis e levamos ao extremo o conceito 'diversidade''.

O Cas, segundo Mdc, vem com a intenção de 'subverter a percepção do 'histórico' na música brasileira'. Em princípio, o programa tinha por principal público pessoas não expostas aos 'dogmas da indústria e de seusonipotentes e onipresentes arautos em nossa mídia'. Assim, a dupla diz evitar dar peso aos medalhões, pretendendo contextualizar presente, passado e futuro dentro da diversidade de nossa música.

'No panteão musical do Cas, os monstros sagrados estão em pé de igualdade com o talento desconhecido', fato que levanta a moral da dupla entre os novos talentos brazucas: 'em geral ignorados pela mídia, eles sabem que nossos critérios são baseados apenas em qualidade do que em jabá'. A relação de confiança existente juntos aos músicos e bandas, dizem, faz com que eles recebam trabalhos antes de sequer ir para prensagem.


Trabalho gráfico da dupla


'Por vezes, até nós nos surpreendemos com a recepção que o programa tem. Já fomos objeto de matérias em prestigiadas revistas impressas e sites especializados em world music pelo mundo afora', comemora. 'O que era para ser uma coisa local de Londres se transformou em uma rede extremamente dinâmica de pessoas interessadas em cultura brasileira'.


Por meio da internet, o programa ultrapassa fronteiras e tem sua maior audiência nos Estados Unidos e Inglaterra, mas chega também a locais inusitados como Curaçao, Austrália, Finlândia e Faixa de Gaza. Está em fase de finalização um pequeno documentário com uma série de entrevistas com esses ouvintes. Sua comunidade no Facebook passou de mil membros em seis meses, sem grande divulgação. 'Para eles somos não apenas uma referência cultural, mas amigos que batem um papo com eles toda semana. Eles seguem nossas dicas, procuram comprar as bandas que recomendamos e vão aos shows dos 'nossos' artistas quando divulgamos suas turnês internacionais'.

A procura dos brasileiros pelo site tem aumentado. Para Mdc, procura-se o Cas para conhecer facetas da música produzida em nosso País às quais não temos acesso pelos meios de comunicação tradicionais.

'Aqui nos convenceram de que o mundo inteiro se ajoelha perante o talento musical do brasileiro, o que é um certo exagero' diz. 'Sim, existe uma admiração no mundo do jazz, não apenas pelos bossa-novistas, mas também por artistas experimentais como Egberto Gismonti e Hermeto Pascoal. Os amantes de world music têm algum conhecimento dos medalhões da MPB. Mas daí a dizer que nossa música hipnotiza as massas pelo mundo afora é ufanismo bobo'.


Sobre shows de brasileiros no exterior, graceja: 'Volta e meia nos chega uma notícia de que um Caetano ou uma Joyce lotaram o Royal Albert Hall. O que não é mentira, só omitem o fato de que 85% do público era composto de imigrantes brasileiros acometidos de banzo'.

O conhecimento médio sobre World Music, afirmam, não vai muito além do superficial, sendo samba e salsa comumente confundidos. Para explicar a diferença, Mdc é alegórico: 'são tão parecidos quanto nosso futebol e o futebol americano: os dois são jogados na grama, por um bando de homens correndo atrás de uma bola, mas em um deles nem redonda a bola é'.

Irritado com as premiações de música brasileira, em que sempre se levantam rumores de uma música brasileira 'morta' ou decadente', Mdc informa que o que está decadente é outra coisa: 'A música brasileira nunca esteve decadente, nunca esteve moribunda, porque ela é feita por artistas que, com ou sem os olhos da mídia voltados para eles, nunca deixaram de criar. Esses prêmios revelam apenas quem é quem na moribunda e deprimente indústria musical. ‘Música brasileira’ e ‘indústria da música brasileira’ são duas entidades distintas que, especialmente nesses novos tempos, temos que aprender a distinguir'.

(Também na Revista Capitu Literatura e Cultura)