domingo, 22 de fevereiro de 2009

#3 A literatura questionadora: Procurando Firme, de Ruth Rocha

Seria preciso grande ousadia para fazer um menino brincar de boneca de vez em quando. Não chegarei a tanto. Mas um pensamento me veio de repente, ontem à noite, com certo alarme: enquanto meninos brincarem de espada, e meninas de boneca, continuaremos na idade da pedra.
(do jornalista Marcelo Coelho, em seu blog)


Procurando Firme nos é apresentado em forma de diálogo. Entendemos Ruth Rocha como a contadora de histórias (o que nos remete já a um cunho muito tradicional da literatura infantil, aquele das histórias passadas de geração a geração) sempre em conversa com seu interlocutor. A relação escritor/ leitor se dá na interação/ interferência: esse questiona, reclama, pergunta... E aquele realmente se importa com sua opinião, demonstrando conhecimento de que trabalha com uma referência tradicional já mais que conhecida por todos: a dos contos de fada. Há um porém: a história que Ruth Rocha nos traz não é ‘comum’. Ela deixa claro que busca respaldo nas histórias tradicionais, mas de início avisa a nos precaver. O relacionamento da autora com seu interlocutor, então, é um convite à mudança de perspectiva da literatura como um sistema fechado para um que se constrói de forma compartilhada; que a obra pode ser dinâmica e seus parâmetros questionáveis.
Ao trabalhar com o conhecimento prévio do leitor sobre gêneros, formas, temas, Rocha abre um horizonte de expectativas e leituras, terminologia buscada em Jauss (apud Gadamer), que considera o efeito pretendido por seu escrito decorrente de um processo de compreensão de mundo por quem lê; um conjunto de referências regidos por determinadas convenções, nos dizeres de Regina Zilberman:
  • Social, pois o indivíduo ocupa uma posição na hierarquia das sociedades;
  • Intelectual, porque ele detém uma visão de mundo compatível, na maioria das vezes, como seu lugar no espectro social, mas que atinge após completar o ciclo de sua educação formal;
  • Ideológica, correspondente aos valores circulantes no meio. De que se imbuiu e dos quais não consegue fugir;
  • Lingüística, pois emprega um certo padrão expressivo, mais ou menos coincidente com a norma gramatical privilegiada, o que decorre tanto de sua educação, como do espaço social em que transita.

Portanto, nessa ‘história de príncipes e princesas’, começamos o percurso com um principezinho, eximiamente treinado para ser forte, sair do castelo e enfrentar o mundo. “Ora”, nos perguntamos, “nada mais normal para um menino”, podemos talvez dizer...Um príncipe que é ensinado até a cuspir na cara, dar cotovelada e ralar o joelho. O elemento de espanto, de humor, nos é apresentado de forma natural, afinal, atitudes ‘sapecas’ como essa são comuns a muitos meninos. Contada a história do príncipe, Ruth Rocha começa a história de uma branca princesinha.


Inspirada em Rapunzel, Linda Flor é exímia em dotes e mimos, que afinal não servem para muita coisa:





— Pois é, naquele reino era muito bonito ter prendas...
— Prendas?
— É, dotes...
— Dotes?
— É, saber fazer coisas que não servem pra nada, que é pra todos saberem que a pessoa é rica... Só faz as coisas pra se distrair...


A princesinha, como vemos, é um orgulho para toda a família com sua educação e tato. Diferente do menino príncipe, sua função é ser muito prendada e esperar para que, um dia, um belo pretendente suba por suas tranças até a torre e a despose. Entretanto, a bela moça revolta-se com a situação e passa a não querer mais nenhum mimo e nenhum pretendente. Tudo exposto naturalmente, sem perguntas ou críticas; o leitor vai formar seus próprios conceitos, refletir sobre a situação ilustrada.


Linda Flor muda completamente: passa a usar calças, corta o cabelo, questiona mesmo o uso do próprio nome — diz não gostar dele. A princesa passa a fazer tudo o que seu irmão fazia: treinava gritos, cotoveladas e cuspidelas. Por que não? A autora, repito, em nenhum momento levanta alguma questão, apenas dá a princesa o mesmo destino dado ao seu irmão. Os dois puseram-se a procurar firme: não se sabe bem quem ou o quê.
Devo lembrar que todo esforço de ensino ao menino, e depois a Linda Flor, é para que um dia seja enfrentado o Dragão que, assim como em Chapeuzinho Amarelo, é a personificação do medo (e também dos obstáculos que enfrentamos). Esse, assim como na história de Chico, não vale de muita coisa quando visto de perto, pois não é nada difícil ultrapassá-lo, tanto para o príncipe, quanto para Linda Flor. O ilustrador Cláudio Martins, na edição que utilizei, nos mostra o dragão sendo enfrentado, à lança, por um rato. Será que tão grande figura ameaça tanto para ser enfrentada por um rato?


Dragão e Lobo são figuras do medo encontradas na tradição e já de todo, pela leitura dos autores, superadas. Os discursos ligados a outras fontes servem, neste momento, à superação de paradigmas, à quebra de expectativas, surpreendendo o leitor.
Não posso deixar de pensar na questão de gênero, já discutida na literatura infantil. A autora nos diz que a menina tem o mesmo direito de enfrentar o mundo e a vida do jeito que entende ser o melhor para si. Vemos semelhante narrativa em Faca Sem Ponta, Galinha Sem Pé, da mesma autora, em que o papel de menino e menina são invertidos e o tema desenvolvido, em linha gerais, é a educação de acordo como o gênero.
Rocha, em uma narrativa leve, oferece aos dois o mesmo direito de escolha, de vida; independente de gênero ou história de cada personagem. A mensagem é dada de forma clara, e não se faz necessário nenhum desfecho moralizante. O final, ao contrário, é uma mensagem que indica a liberdade.


As duas leituras são signo de um processo de emancipação da literatura, a quebra do status quo. É a liberdade no pensar e olhar, a afirmação de que não há apenas uma maneira de vivenciar o mundo, visto que os modelos de textos com os quais os autores trabalham (Chapeuzinho Vermelho, Contos de príncipes e princesas) são resultado de um conjunto de determinações, sejam literárias ou sociais, e trazem à tona uma face histórico-cultural voltada aos interesses de determinada época e classe social, em que o processo de recepção é diverso, em que as personagens servem como modelo de conduta, exemplo moral. Isso significa que Buarque e Rocha buscam identificar, analisar, questionar normas que regem a escrita e sociedade sob uma perspectiva que considera a construção do leitor enquanto sujeito questionador, capaz de compreender as nuances de diferentes atitudes e suas determinadas conseqüências.

Mais:

Ruth Rocha, Procurando Firme. Ilustrações de Cláudio Martins. São Paulo: Ática, 2000.
Ruth Rocha, Faca sem Ponta, galinha sem Pé. São Paulo: Ática, 2003.
Hans Robert Jauss, A história da Literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994.
Vincent Jouve, A leitura. São Paulo: Ed. UNESP, 2002.
Regina Zilberman, “Literatura Infantil: livro, leitura, leitor”, em: A produção Cultural pela Criança. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1982.

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