terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Trouxeste a chave?



You Are Welcome To Elsinore

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós

e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras noturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos conosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o
amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Mário Cesariny de Vasconcelos

domingo, 22 de fevereiro de 2009

#3 A literatura questionadora: Procurando Firme, de Ruth Rocha

Seria preciso grande ousadia para fazer um menino brincar de boneca de vez em quando. Não chegarei a tanto. Mas um pensamento me veio de repente, ontem à noite, com certo alarme: enquanto meninos brincarem de espada, e meninas de boneca, continuaremos na idade da pedra.
(do jornalista Marcelo Coelho, em seu blog)


Procurando Firme nos é apresentado em forma de diálogo. Entendemos Ruth Rocha como a contadora de histórias (o que nos remete já a um cunho muito tradicional da literatura infantil, aquele das histórias passadas de geração a geração) sempre em conversa com seu interlocutor. A relação escritor/ leitor se dá na interação/ interferência: esse questiona, reclama, pergunta... E aquele realmente se importa com sua opinião, demonstrando conhecimento de que trabalha com uma referência tradicional já mais que conhecida por todos: a dos contos de fada. Há um porém: a história que Ruth Rocha nos traz não é ‘comum’. Ela deixa claro que busca respaldo nas histórias tradicionais, mas de início avisa a nos precaver. O relacionamento da autora com seu interlocutor, então, é um convite à mudança de perspectiva da literatura como um sistema fechado para um que se constrói de forma compartilhada; que a obra pode ser dinâmica e seus parâmetros questionáveis.
Ao trabalhar com o conhecimento prévio do leitor sobre gêneros, formas, temas, Rocha abre um horizonte de expectativas e leituras, terminologia buscada em Jauss (apud Gadamer), que considera o efeito pretendido por seu escrito decorrente de um processo de compreensão de mundo por quem lê; um conjunto de referências regidos por determinadas convenções, nos dizeres de Regina Zilberman:
  • Social, pois o indivíduo ocupa uma posição na hierarquia das sociedades;
  • Intelectual, porque ele detém uma visão de mundo compatível, na maioria das vezes, como seu lugar no espectro social, mas que atinge após completar o ciclo de sua educação formal;
  • Ideológica, correspondente aos valores circulantes no meio. De que se imbuiu e dos quais não consegue fugir;
  • Lingüística, pois emprega um certo padrão expressivo, mais ou menos coincidente com a norma gramatical privilegiada, o que decorre tanto de sua educação, como do espaço social em que transita.

Portanto, nessa ‘história de príncipes e princesas’, começamos o percurso com um principezinho, eximiamente treinado para ser forte, sair do castelo e enfrentar o mundo. “Ora”, nos perguntamos, “nada mais normal para um menino”, podemos talvez dizer...Um príncipe que é ensinado até a cuspir na cara, dar cotovelada e ralar o joelho. O elemento de espanto, de humor, nos é apresentado de forma natural, afinal, atitudes ‘sapecas’ como essa são comuns a muitos meninos. Contada a história do príncipe, Ruth Rocha começa a história de uma branca princesinha.


Inspirada em Rapunzel, Linda Flor é exímia em dotes e mimos, que afinal não servem para muita coisa:





— Pois é, naquele reino era muito bonito ter prendas...
— Prendas?
— É, dotes...
— Dotes?
— É, saber fazer coisas que não servem pra nada, que é pra todos saberem que a pessoa é rica... Só faz as coisas pra se distrair...


A princesinha, como vemos, é um orgulho para toda a família com sua educação e tato. Diferente do menino príncipe, sua função é ser muito prendada e esperar para que, um dia, um belo pretendente suba por suas tranças até a torre e a despose. Entretanto, a bela moça revolta-se com a situação e passa a não querer mais nenhum mimo e nenhum pretendente. Tudo exposto naturalmente, sem perguntas ou críticas; o leitor vai formar seus próprios conceitos, refletir sobre a situação ilustrada.


Linda Flor muda completamente: passa a usar calças, corta o cabelo, questiona mesmo o uso do próprio nome — diz não gostar dele. A princesa passa a fazer tudo o que seu irmão fazia: treinava gritos, cotoveladas e cuspidelas. Por que não? A autora, repito, em nenhum momento levanta alguma questão, apenas dá a princesa o mesmo destino dado ao seu irmão. Os dois puseram-se a procurar firme: não se sabe bem quem ou o quê.
Devo lembrar que todo esforço de ensino ao menino, e depois a Linda Flor, é para que um dia seja enfrentado o Dragão que, assim como em Chapeuzinho Amarelo, é a personificação do medo (e também dos obstáculos que enfrentamos). Esse, assim como na história de Chico, não vale de muita coisa quando visto de perto, pois não é nada difícil ultrapassá-lo, tanto para o príncipe, quanto para Linda Flor. O ilustrador Cláudio Martins, na edição que utilizei, nos mostra o dragão sendo enfrentado, à lança, por um rato. Será que tão grande figura ameaça tanto para ser enfrentada por um rato?


Dragão e Lobo são figuras do medo encontradas na tradição e já de todo, pela leitura dos autores, superadas. Os discursos ligados a outras fontes servem, neste momento, à superação de paradigmas, à quebra de expectativas, surpreendendo o leitor.
Não posso deixar de pensar na questão de gênero, já discutida na literatura infantil. A autora nos diz que a menina tem o mesmo direito de enfrentar o mundo e a vida do jeito que entende ser o melhor para si. Vemos semelhante narrativa em Faca Sem Ponta, Galinha Sem Pé, da mesma autora, em que o papel de menino e menina são invertidos e o tema desenvolvido, em linha gerais, é a educação de acordo como o gênero.
Rocha, em uma narrativa leve, oferece aos dois o mesmo direito de escolha, de vida; independente de gênero ou história de cada personagem. A mensagem é dada de forma clara, e não se faz necessário nenhum desfecho moralizante. O final, ao contrário, é uma mensagem que indica a liberdade.


As duas leituras são signo de um processo de emancipação da literatura, a quebra do status quo. É a liberdade no pensar e olhar, a afirmação de que não há apenas uma maneira de vivenciar o mundo, visto que os modelos de textos com os quais os autores trabalham (Chapeuzinho Vermelho, Contos de príncipes e princesas) são resultado de um conjunto de determinações, sejam literárias ou sociais, e trazem à tona uma face histórico-cultural voltada aos interesses de determinada época e classe social, em que o processo de recepção é diverso, em que as personagens servem como modelo de conduta, exemplo moral. Isso significa que Buarque e Rocha buscam identificar, analisar, questionar normas que regem a escrita e sociedade sob uma perspectiva que considera a construção do leitor enquanto sujeito questionador, capaz de compreender as nuances de diferentes atitudes e suas determinadas conseqüências.

Mais:

Ruth Rocha, Procurando Firme. Ilustrações de Cláudio Martins. São Paulo: Ática, 2000.
Ruth Rocha, Faca sem Ponta, galinha sem Pé. São Paulo: Ática, 2003.
Hans Robert Jauss, A história da Literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994.
Vincent Jouve, A leitura. São Paulo: Ed. UNESP, 2002.
Regina Zilberman, “Literatura Infantil: livro, leitura, leitor”, em: A produção Cultural pela Criança. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1982.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

#2 A literatura questionadora: Chapeuzinho Amarelo, ou "dome seu medo"

O discurso que vai além de suas páginas já é, por si, questionador: nos leva a perseguir outros significados, não só os dados pelo autor. Podemos ver isso, por exemplo, a partir das ilustrações de um texto e da própria organização gráfica de um livro. A parceria, em Chapeuzinho Amarelo (José Olympio Editora), entre Ziraldo e Chico Buarque presta esse serviço. Ziraldo, já conhecido e consagrado por obras que instigam discussões e reflexões (O Menino Marrom, Flicts), traz ao texto de Chico imagens que ampliam sua dimensão.




Na ilustração, é a tradição do medo à sombra da menina, em suas costas, cristalizada, trazida pelas obras de Perrault/Grimm. O ‘LOBO’ é sombra e está em caixa alta, é o sujeito que domina e dá o tom de toda a primeira parte do livro. As cores de Chapeuzinho são pálidas; seu olhar, de esguelha, desconfiado. Os verbos estão no pretérito imperfeito, indicando continuidade de um fato (o medo), são em tom melancólico, triste (descia, resfriada, tossia, estremecia) e sempre acompanhados de negativa. Os discursos de autor e ilustrador se completam.
Em Perrault/Grimm, a personagem de Chapeuzinho Vermelho ainda não conhecia o medo, que se instaura com a figura dominante do ‘lobo’. Os papéis cumpridos pelos sujeitos da história trabalham a uma ética moralizante, que ensina à criança determinados preceitos e condutas condizentes à época em que foram escritos. Chapeuzinho Amarelo já está impregnada desses preditos e teme algo que não se pode ver: um ‘lobo’ virtual, que talvez nem existisse, era o maior dos medos — talvez a reunião de todos eles.






Chico, em um discurso que se inicia paródico, leva o leitor a um caminho inesperado, desencadeado pela ‘diminuição’ do significante LOBO, para “só lobo” exatamente no momento em que a menina o vê de perto.
Ora, o autor explicita ao leitor que Chapeuzinho deve enfrentar o que se teme, perceber se a realidade é tão grande quanto ela (e talvez nós também) pensa. A narrativa, neste ponto, é totalmente invertida, em valores e papéis. O ‘lobo’, antes temível, procura manter seu valor, e para tal se vale da repetição do seu nome, “umas vinte e cinco” vezes. De tanto repetir, o ‘lobo’ inverte a ordem da palavra. De ‘lobo’ vai à ‘bolo’, e a inversão do significante é também a inversão do medo.






Agora, Chapeuzinho domou seu medo (o sintagma invertido torna-se o imperativo “dome”) e é quem se impõe ao ‘lobolo’. Agora não há nada a temer. Todo o seu medo tornou-se amizade, uma vez invertidas a ordem dos significantes. A ilustração de Ziraldo nos dá o índice da mudança ao traçar o caminho do lobo ao bolo, assim como todos os medos “trocados”. Toda a obra instiga a criança a perceber que os medos podem ir e vir e que a solução da personagem recontada por Chico Buarque foi essa, mas ao fim refletimos sobre a possibilidade de criarmos outros monstros e a nos perguntar sobre nossos medos.



Mais:

Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque
Ilustrações de Ziraldo
José Olympio Editora

#1 A literatura questionadora: Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque e Procurando Firme, de Ruth Rocha

Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, é uma releitura da obra original de Perrault, Chapeuzinho Vermelho, obra essa também já relida, numa mesma chave, pelos irmãos Grimm. Procurando Firme, de Ruth Rocha, por sua vez, nos traz os tradicionais Contos de Fada. Os autores, nas obras escolhidas que compõem a primeira discussão do blog, “a literatura questionadora”, trabalham numa chave em que a tradição literária para crianças é revisitada ludicamente num discurso que brinca com expectativas, valores e significados. Buarque e Rocha, leitores de uma literatura pedagógica e moralizante, partem para a subversão de histórias que há tempos estão cristalizadas na memória coletiva, um questionamento sobre a construção de sentidos e dos papéis dos sujeitos a partir de um discurso proveniente de outras narrativas. O resultado é uma fala original, instigante, que facilmente pode ser decodificada a partir de leituras já realizadas, e por sua vez também é capaz de ser reinventada e explorada além do texto, formando leitores ‘pensantes’ sobre si e o mundo que os rodeia.