terça-feira, 2 de junho de 2009

Entre le Murs

Entre os muros da Escola e da Rotina


Dias após o deadline, não tenho o texto feito, não pensei sobre a matéria sobre Entre os Muros da Escola, livro de François Begaudau, que já deveria estar pronta . Levo bronca. Preciso descansar, não tenho tempo para nada. Lamento-me. Entre estudo, estágio, trabalho, ocupo em torno de 17 a 18 horas do meu dia. Tudo cronometrado, ensaiado, sem atrasos, sem queixas. Esse é o meu dia-a-dia, esse é a rotina do professorado, que, como eu, pobres!, não podem reclamar – quer dizer, poder pode, mas e aí? Começo a pensar sobre o que devo escrever, como devo começar, o que é importante ser ressaltado. Os pensamentos vão e vem em lembranças que passam pelo orgulho do que faço, do esforço diário, da conversa com as profissionais do ensino que não querem continuar na escola (das três com quem trabalho, duas declaradamente querem muito sair dali, daquelas famosas quatro paredes das salas de aula). Pergunto-me por quê. Além disso, procuro não misturar a minha vida com o delicioso relato de Begaudau. É duro não fazer um mix dessas realidades a mim tão parecidas.


Dia desses, resolvi comprar o Entre os Muros da Escola, visão desse professor francês sobre tudo o que vê e sente na rotina de seu trabalho. Narrativa quase em formato de relatório, temperado com singela ironia nas entrelinhas, mas sem vangloriar ou diminuir o papel de ninguém, nem o seu próprio. A leitura fez ressoar as 18 horas do meu dia em que passo acordada antes de cair como pedra na cama. A vontade de não ir ao trabalho, a descrença no aluno, o preconceito de classe e origem, o racismo, a falta de estímulo geral, a falta de razão, a falta de contexto. A falta. O que não falta é a vontade mútua de sumir dali... de mudar, não sabendo bem pra onde.

Pra quê aprender francês? Perguntam lá, pra que aprender português? Perguntam aqui. Foi difícil ler sem pôr um quadro em cima do outro, como num filme em que somos protagonistas. Às vezes não sabia se me recordava do livro ou do meu trabalho na escola da esquina de casa.

Na França de Begaudau, o liceu da periferia é formado por imigrantes, filhos de imigrantes e por aqueles que, por não ter condições de sair dali, ficaram. O professor entra em sala de aula já com a tensão de propôr algo que, anyway, não fará sentido ao aluno, por mais que seja explicado que sim, faz. Faz, você entendeu?

O cabo de guerra está sempre esticado, e a luta está mais em mostrar quem tem a força ali, do que construir o conhecimento (jargão tão utilizado e tão banalizado, não é?). Nas redações pedidas por Begaudau, o aluno negro filho de imigrantes escreve que não é visto como um igual naquele lugar onde sua condição lhe é jogada na cara, crua como um tapa. O professor diz “deixem que eles fiquem nesse bairro sujo para sempre”. A corda está sempre esticada. Aqui, um aluno também negro, também filho de imigrantes, reclama de sua vida, por apanhar, por não ser compreendido. Quem lhe escuta? Eu? Você? A escola? Docentes riem na sala dos professores.



Às vezes, aqui e lá, eles são escutados. Depende do professor...

E esse então é igualzinho, oh Deus, aqui e lá. Chegam à famigerada sala docente desolados, nervosos. Um com o cabelo em pé, outro, olheiras no queixo, outro, o nó na garganta. Outro quieto, cansou de reclamar. Em São Paulo, professor não tem vez, dizem. Tira o Fulano do poder que se ajeita, dizem. Como parte da classe, sou propensa a concordar com as queixas, mas preciso pensar antes numa racional, cartesiana diria, reflexão sobre o assunto. Desisti, queria comer um pão e deitar. Que preguiça, meu Deus, que coisa, não quero voltar, não quero encarar. Receio, medo, raiva, angústia, riso, escárnio, vontade. Begaudau me entendeu. Quando o professor vai parar de queixar-se? E quando o poder público reconhecerá o trabalho árduo da classe? E quando o professor vai parar de dizer que não é psicólogo? E quando os problemas da vida batem na porta da sala? Sou eu ou o livro... Acho que já estou a misturar as coisas por aqui.

Idealista, dizem. Entro na sala pensando em como posso parar o funk do aluno da 6°B.

Begaudau narra a reunião dos professores no fim do semestre. Lá não tem progressão continuada, pensei. Duas alunas fazem parte do grupo, são as representantes de classe. Ah, só podia ser livro francês... Onde já se viu isso aqui? Elas, alunas, riem, tossem, quase vomitam de gargalhar, saem. Afinal, não é tão diferente. Tem aluno que acerta o sorvete na nuca, disse uma antiga colega. Preciso pensar por qual motivo, naquele momento pontual, veja bem, as adolescentes precisam entender o que aquela reunião significa, o que a nota e a aula de francês significam.

Responsabilidade se cria de cedo, e educação vem do berço, dizem. Mas e se não veio, o que fazer?

Paquidérmicos, os alunos ouvem o texto de um livro didático aqui. Ressonantes, conjugam o passado composto lá. A graça da aula se dá no momento da discussão ou da briga. A luz vêm ao olho, e com isso a fala nada burra de quem sabe muito, mas que nós, professores ainda não encontramos definitivamente a forma de fazer como saibam mais, como aprimorar nosso trabalho. Lá e aqui, surpreendemo-nos com a capacidade dos alunos, com sua perspicácia e inteligência. Ao mesmo tempo, queremos que eles aprendam ao nosso modo, tradicional, correto e tranquilo. Não são animais, ora, nem tudo é oba-oba na vida!

Falando em oba-oba, o que é a roupa daquela menina de 14 anos que mostra o umbigo e os seios apertados na blusa aqui? O que é a moça de 15 anos que usa roupas espalhafatosas e brincos de 10 centímetros lá? Por que implicamos? Por que ressaltamos isso? A escola é o lugar da privação de desejos, do corpo, da fala. Begaudau olhou para tudo isso e para todos argutamente, mas sua narrativa mostrou mais de si mesmo, assim como esse texto acabará mostrando mais de mim. A angústia, as felicidades e desgraças desse francês não foram milagrosamente acertadas no fim como em um filme de Morgan Freeman. Como eu, ele não tem respostas, não mostra e não pretende responder nada. Não se sabe se, um dia, pensará em dar cabo às situações que narrou, não é o que importa.

São 11:15h da noite, e fecho o livro de capa azul. Afinal, depois de dois dias não lembro se o que pensei são histórias minhas ou do François. São tantas as semelhanças, são tão poucas as diferenças. A França não é tão longe assim afinal, não para o professor. Ficou um sentimento engraçado de irmandade, de uma dúvida sempre suspensa no ar, à espera de uma resposta, à espera que o cansaço e o enfado não venham antes do trabalho. O jogo de futebol, que nós é caro, fecha a narrativa de forma tão íntima... A identificação foi de fato total.